Conteúdo transversal na grade curricular

Marina Feferbaum
04 de maio de 2021
Conteúdo transversal na grade curricular. Marina Feferbaum, Revista Ensino Superior

Créditos: pixabay.

 

O ensino superior tem papel central nessa missão, seja pela sua função certificatória da titulação de seus alunos, seja como produtor, sistematizador e reprodutor do conhecimento acadêmico

 

O espaço criado pela tecnologia digital – a infosfera – trouxe à humanidade um novo mundo para ser povoado, um verdadeiro habitat para o ser humano ocupar, trabalhar, relacionar-se e viver. Um mundo com dinâmica, regras e consequências próprias, imperceptíveis pelos cinco sentidos, mas bastante concretas quanto aos seus efeitos. Um mundo de possibilidades ainda pouco exploradas, mas já com impactos profundos em todos os aspectos da sociedade. Um mundo paradoxalmente desconhecido e bastante familiar. Um mundo a ser estudado e compreendido.

Ainda que familiar, somos recém-chegados à infosfera. E chegamos incivilizados, alheios à sua natureza e ao seu funcionamento. Aos poucos, estabelecemos normas sociais digitais (como a netiqueta), aprendemos sobre os perigos imediatos (como a perenidade dos conteúdos) e criamos ferramentas de sobrevivência (como política de senhas). Em termos civilizatórios, chegamos, enfim, à idade da pedra lascada.

Para avançarmos como sociedade, precisamos falar sobre cidadania digital. E precisamos fazê-lo principalmente no escopo da educação. Afinal, o digital já é uma dimensão da sociedade, e não um nicho restrito a uma profissão ou especialidade particular. A personalidade digital é uma imagem da existência real, projetada por luz fora do espectro visível e, portanto, inalcançável por nossos sentidos, embora de resolução e nitidez inimagináveis, visíveis apenas aos autômatos digitais, os verdadeiros senhores do digital. Aliás, diferentemente da ideia vulgar sobre as gerações mais novas, muitos deles nascidos após a revolução digital (para quem a tecnologia online é natural), não há (nem jamais haverá) nenhum indivíduo humano que se repute verdadeiro nativo digital. Como observa Luciano Floridi (professor de Oxford que criou o conceito de infosfera), os verdadeiros nativos digitais são os dispositivos, programas, sistemas etc., pelos quais trafegam nossos dados. Logo, é preciso aprender sobre o mundo digital para desenvolver uma consciência digital capaz de orientar nossa conduta.

A ideia de cidadania digital vem da percepção de que nossos atos digitais afetam o coletivo, atribuindo-nos responsabilidade moral por nossas condutas. Nesse sentido, só há livre-arbítrio digital se há ciência do agente sobre as consequências de suas ações e omissões. Caso contrário, não seria possível avaliá-las moralmente na perspectiva digital.

A dificuldade de uma cidadania digital – e daí a necessidade de discuti-la qualificadamente – decorre da intangibilidade do digital, mais comumente conhecida pela diferença real/virtual. Isto é, não vemos, ouvimos, nem sentimos de qualquer maneira o digital e, principalmente, não percebemos a maciça vigilância a que somos submetidos ininterruptamente para alimentar toda uma nova forma de capitalismo, como alertado por Shoshana Zuboff, professora de Harvard que cunhou o conceito de capitalismo de vigilância.

Cada clique que damos, site que acessamos, os dispositivos que usamos, os likes que distribuímos, enfim, todos os dados que o nosso comportamento na esfera digital gera são coletados imperceptivelmente para fins dos mais variados, sem uma compreensão exata do que isso signifique.

A falta de controle adequado sobre quais dados aceitamos fornecer, a quem e para que fim nos deixa em posição de vulnerabilidade. Se desconhecemos os tratamentos e suas possíveis consequências, não temos como decidir conscientemente sobre seu uso. E assim, fornecemos despreocupadamente nossos dados mais íntimos a diversos agentes, que os utilizam unicamente conforme seus interesses, sejam eles nobres ou não.

Ainda que não tenhamos nada a esconder, o fornecimento descuidado de dados não é inofensivo. Um único agente, por exemplo, é capaz de corromper até as mais bem estabelecidas democracias, tenha ele perfis suficientes para tanto, o que não chega a ser um obstáculo. Logo, é preciso estudar e refletir sobre os atos digitais da mesma maneira que o fazemos no mundo real. A cidadania digital parte da responsabilidade individual, cuja instrumentalidade depende de direitos: o direito de acessar as ferramentas tecnológicas, de decidir quais dados queremos fornecer e quais não, de receber ou não determinadas propagandas no meio de uma notícia e na hora que bem entendermos etc. Tudo, reitera-se, informado pelo uso pretendido dos dados e de suas consequências.

Ter consciência das consequências e poder tomar decisões com autonomia é parte do empoderamento das pessoas, da humanidade e do projeto de mundo que queremos ter na era digital. Logo, a conscientização é parte fundamental desse projeto, tendo o ensino superior papel central nessa missão, seja pela sua função certificatória da titulação de seus alunos, seja como produtor, sistematizador e reprodutor do conhecimento acadêmico. Afinal, o ensino superior não deve apenas formar profissionais, mas também cidadãos.

Para que os profissionais do futuro sejam capazes de criar um mundo para chamar de lar, deverão ser capazes de transformar o espaço público digital em uma verdadeira esfera pública da sociedade, democraticamente construída e minimamente regida pelos direitos humanos. Incluir a cidadania digital como conteúdo transversal na grade curricular parece um bom ponto de partida.

Construir e fomentar esses valores básicos de democracia e cidadania é urgente para a criação de uma sociedade digital civilizada: a cidadania digital enquanto eixo interdisciplinar, transversal e verdadeiramente transformador da sociedade.

 

Originalmente publicado em:
https://revistaensinosuperior.com.br/