As faculdades de Direito pioram os estudantes?

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O curso, ou melhor, o percurso do programa de graduação em Direito serve (ou deveria servir) para formar profissionais preparados para enfrentar as carreiras jurídicas. Ou seja, alguém que seja capaz de pensar as complexidades do mundo (seja lá qual for o seu recorte) pelo prisma das leis e das teorias jurídicas. Seria, então, somente isso? Não deveria o curso de Direito formar também a pessoa? É possível dissociar a pessoa do jurista e focar somente nesse último?
Há tempos que discutimos a necessidade de conteúdos transversais, inter e multidisciplinaridade, habilidades sociais para lidar com equipes, clientes etc. no desenho de aulas, cursos e programas como estratégia para preparar egressos que consigam enfrentar uma profissão em plena transformação, seja para lidar com a complexificação do próprio Direito positivo (em especial pela explosão de temas ligados ao digital), seja para conseguir desenvolver o trabalho jurídico no contexto das novas tecnologias e organização do trabalho. Porém, pouco se tem discutido o que a manutenção de um enfoque preponderantemente conteudista disciplinar poderia prejudicar o egresso para além de uma questão de competitividade no mercado.
Nesse sentido, questionar se as faculdades de Direito pioram os estudantes constitui uma pergunta fundamental. Muitos estudos demonstram um aumento significativo no número e na gravidade de problemas relacionados a bem-estar e saúde mental entre estudantes de Direito. Em jurisdições como Austrália, Reino Unido e Estados Unidos, há pesquisas empíricas demonstrando que a experiência na faculdade de Direito pode gerar níveis maiores de estresse, ansiedade e depressão, e níveis mais baixos de bem-estar geral do que os experimentados pela população em geral. [1]
Apesar de existirem poucos estudos sobre o tema no ensino jurídico brasileiro, a pesquisa Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto? revelou uma mudança na postura dos estudantes nos últimos anos do curso: ficam mais quietos, isolados e parecem não fazer mais questão de interagir entre si. Muitos, inclusive, descreveram sua presença em sala de aula como simplesmente “de corpo”. [2]
Estudos também sugerem que as faculdades de Direito impactam negativamente aspectos da identidade e da formação dos estudantes, por suprimir parte de suas aspirações e valores. Indicam que, ao longo da faculdade, os estudantes aprendem que precisam esconder ou deixar de lado parte fundamental de seus valores internos, de seu senso de justiça e de sua sensibilidade ao sofrimento humano para poderem “pensar a agir como advogados(as)” [3]. Há professores que argumentam que as faculdades de Direito fazem com que os estudantes se tornem profissionais piores do que poderiam ser. Dean Spade, por exemplo, aponta que o clima competitivo e individualista das faculdades de Direito é nocivo para a formação dos estudantes, prejudicando sua capacidade de trabalhar em grupos, colaborar, escutar, compartilhar espaços de poder e oferecer e receber críticas. [4]
Soma-se a esse cenário uma maior complexidade da sociedade em que estamos vivendo, marcada pelo surgimento das novas tecnologias. Recentemente, por exemplo, com o uso da Inteligência Artificial, golpistas realizaram uma videochamada falsa com o diretor financeiro de uma multinacional em Hong Kong. Eles usaram registros públicos de profissionais dos quadros da empresa e, por meio de tecnologia deepfake, passaram-se por colegas e convenceram a única pessoa real da reunião a realizar transferências bancárias, que totalizaram cerca de 129 milhões de reais de perda para a companhia.5
O que queremos dizer com esse exemplo sobre o nível atual de complexidade da sociedade e de novas modalidades de crimes é que não basta mais considerar apenas o conteúdo para atualizar a grade curricular quando o mercado está demandando soft skills dos profissionais jurídicos para se diferenciar e enfrentar esses desafios. Consciência de si, liderança, relações interpessoais, empatia, colaboração, comunicação, entre outras competências, são fundamentais para solucionar esses problemas complexos. Elas, contudo, não são trabalhadas no currículo explícito.
Chamamos atenção para os resultados da pesquisa Formando a Advocacia do Presente e do Futuro, 6 que mostraram a visão do mercado de que há uma importante lacuna na formação jurídica com relação às competências socioemocionais. A pesquisa mostrou que essas competências, ao lado das competências jurídicas, de gestão e de tecnologia, compõem um eixo central das habilidades necessárias para que advogados(as) consigam se inserir e progredir na carreira, sendo fundamentais para o sucesso na advocacia.
AS COMPETÊNCIAS SOCIOEMOCIONAIS
Considerando esse cenário, é urgente que levemos a sério o questionamento inicial e tomemos medidas, já que são várias as iniciativas possíveis para solucionar esse problema. Uma delas é algo que acreditamos ser fundamental: a incorporação de uma disciplina específica sobre competências socioemocionais, as famosas soft skills, no currículo jurídico. Ela está em consonância com as recém-lançadas Diretrizes Internacionais para o Bem-Estar na Educação Jurídica, da International Bar Association. Em sua Diretriz 4, recomenda-se que as faculdades de Direito assegurem que o desenvolvimento de habilidades dentro do currículo jurídico inclua habilidades relacionadas ao bem-estar, abrangendo elementos de autocuidado, alfabetização emocional e empatia.
No Brasil, embora o rol de competências descrito no artigo 4o das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Direito (Resolução CNE/CES n. 5 de 2018) também reconheça o papel de competências interpessoais, elas não são trabalhadas no currículo explícito da maior parte das faculdades. Além disso, muitos docentes não possuem nem formação para desenvolvê-las em seus cursos.
Ocorre que tais habilidades, ainda que possam ser buscadas individualmente, só podem atingir o seu pleno desenvolvimento se forem ensinadas com profundidade e com seu devido destaque nos currículos dos cursos. É possível e recomendável que docentes de diversas áreas realizem em sala de aula discussões centradas nos aspectos interpessoais e emocionais da prática jurídica, promovam discussões sobre valores e identidade profissional dos estudantes, e incorporem uma cultura de colaboração e inclusão em sala de aula. Entretanto, acreditamos que sem uma disciplina específica sobre o tema, essas competências não serão trabalhadas com a devida relevância que o contexto atual exige.
Por fim, ao defender a incorporação de cursos de competências socioemocionais, não queremos contribuir para que discussões sobre ensino jurídico girem apenas em torno de quais disciplinas acrescentar. Não basta mais apenas selecionar conteúdo para atualizar o currículo, quando transformações na cultura e premissas dos cursos de Direito são muitas vezes necessárias. Considerando os desafios do contexto atual, acreditamos que oferecer um espaço na grade para trabalhar explicitamente autoconhecimento, inteligência emocional e colaboração reverbera não só no âmbito pessoal, mas também no bem-estar e no sucesso profissional dos estudantes, gerando portanto impactos positivos para a comunidade jurídica como um todo. A sociedade com certeza será diretamente beneficiada por contar com profissionais jurídicos mais bem preparados para enfrentar os desafios cada vez mais complexos com os quais estamos nos deparando.
1 https://www.ibanet.org//document?id=International-Guidelinesfor-Wellbeing-in-Legal-Education
2 https://direito.usp.br/pca/arquivos/591479a9df46_367420por.pdf
3 https://digitalcommons.pepperdine.edu/drlj/vol6/iss1/1
4 https://www.deanspade.net/wp-content/uploads/2010/07/Spade-presumed-incompetent-contribution-final.pdf
5 https://oglobo.globo.com/economia/negocios/noticia/2024/02/04/deepfake-ia-cria-reuniao-falsa-com-diretorfinanceiro-de-multinacional-que-transfere-r-129-milhoes-acriminosos.ghtml
6 https://hdl.handle.net/10438/34165
Originalmente publicado em:
https://revistaensinosuperior.com.br/