A avalanche chegou – O fim das universidades como as conhecemos

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A mudança de valores, propósitos revisitados e pandemia que isolou a população há quase um ano e meio são suficientes para se propor o fim da faculdade?
Discutimos cada vez mais o destino das universidades. Em 2013, um dos principais institutos de pesquisa do Reino Unido publicou um estudo chamado Uma avalanche está chegando: educação superior e a revolução à frente. Para os autores, os fatores que haviam criado a universidade bem-sucedida do século XX estão sendo dissolvidos no séc. XXI. Sua previsão foi a sobrevivência de cinco grandes modelos universitários: as instituições de elite com renome global, as instituições de massa, as instituições de nicho, as instituições locais e os mecanismos de aprendizagem ao longo da vida (lifelong learning). Oito anos e uma pandemia depois, será que a avalanche chegou? Com todas essas mudanças no modo e onde aprendemos, ainda precisaremos dela? E se sim, para quê? Neste artigo discutimos perspectivas para o ensino superior.
A UNIVERSIDADE DO SÉCULO XX PARA O XXI
O ensino universitário ganhou destaque no séc. XX. A universidade se tornou a instituição produtora e detentora do conhecimento e de informações por excelência, rivalizando com laboratórios governamentais e pesquisas em empresas. O historiador Eric Hobsbawn menciona, em sua Era dos Extremos, o nascimento de um novo grupo social na era do pleno emprego pós-guerra: os estudantes, protagonistas dos protestos das décadas de 60 e 70. Até os anos 2000, a quantidade de estudantes, docentes e trabalhadores na educação superior aumentou, assim como vem aumentando paulatinamente sua diversidade de classe, gênero, cor e outros marcadores sociais.
Nesse período de sucesso, consolidaram-se três missões centrais das universidades:
1) A pesquisa. A universidade está no centro da discussão da ciência e seu papel é olhar além, produzindo e difundindo conhecimento científico. Essa posição é disputada, como menciona Barry Bozeman em Technology transfer and public policy, havendo quem entenda que cabe às universidades produzirem conhecimento básico que será apropriado pelo mercado (especialmente neoliberais), enquanto outros consideram importante que elas promovam mercados de inovação e até mesmo sejam remuneradas pelos produtos que desenvolvem;
2) O ensino. As instituições de ensino foram se dando conta da necessidade de formar profissionais para o mercado de trabalho e cidadãos para a vida política, não somente cientistas. Portanto, hoje ela tem também a função formativa, que a coloca nesse lugar de desenvolvimento de domínios, competências e habilidades dos estudantes;
3) A extensão. Por fim, as universidades possuem uma função social. Afinal, o conhecimento científico e profissional deve se estender à sociedade, proporcionando apoio na tomada de decisões, soluções para a comunidade e mudanças na realidade social em que está inserida.
Em países como o Brasil, o ensino superior tornou-se, ainda, um recurso para formação de elites políticas, econômicas e sociais, e, consequentemente, um catalisador de ascensão social – criando a festejada menção à “primeira pessoa da família a ir para universidade”. Inserido nesse contexto social, o diploma universitário representava, em 2020, um salário em média 144% maior em relação a quem conclui ensino médio e 258% maior em relação a quem não conclui (dados da OCDE). Que avalanche seria capaz de desequilibrar essa realidade?
AS PRESSÕES EM CURSO
O mundo mudou bastante nos últimos anos, e o lugar que a academia ocupa na sociedade também está se transformando. A universidade, da forma como a conhecemos, sofre múltiplas pressões e precisa se reinventar. Assim como outros setores, essa transformação não necessariamente implica extinção, mas sim uma reinvenção de funções e atividades.
Há pressão na pesquisa. Cortes orçamentários em universidades públicas contrastam com valores cada vez maiores investidos em startups. Ao contrário do Brasil, onde 70% dos pesquisadores estão no ensino superior, na Coreia do Sul e no Japão cerca de 80% dos pesquisadores estão em empresas. Em linha com um novo papel para o ensino superior, o Bayh-Dole Act, nos EUA, o Marco da Ciência e da Tecnologia, no Brasil, e diplomas em outros locais criaram as bases para que universidades e instituições sem fins lucrativos retivessem direitos patentários e se remunerassem com suas descobertas, ainda que essa visão enfrente resistência de vários pesquisadores universitários.
Há pressão no ensino. A universidade não consegue atualizar e formar pessoas para um mercado de trabalho em que surgem diversas profissões e funções, na velocidade em que as mudanças vêm ocorrendo. A formação transborda para outros espaços. Nanodegrees, formações ofertadas por empresas (“universidades corporativas”) ou mesmo indivíduos já oferecem capacitações sobre temas altamente especializados, com a atualidade que os empregadores exigem. Isso atende a uma demanda por conhecimento extremamente especializado e atual, algo que muitos currículos de graduação, com suas ementas defasadas, não oferecem ao/à estudante que se forma. Processos seletivos começam a se inclinar mais para a efetiva demonstração de habilidades (inclusive por aplicativos e gamificação), e menos para a apresentação de diplomas.
O conceito de lifelong learning, adicionado à própria Constituição de 1988, aponta para uma transformação também. Nessa nova mentalidade, não há mais divisão sobre educação formal inicial e educação permanente. Pessoas precisam aprender o tempo todo, qualificando-se e atualizando-se devido à velocidade das mudanças sociais e no mercado de trabalho. Tudo isso sem as mesmas barreiras físicas, já que pela internet é possível estudar em instituições estrangeiras e interagir com acadêmicos de todas as partes do mundo. Uma nova geração chega acostumada com aulas pelo YouTube – o Raio-X Universia mostrou que 45% dos jovens se preparam para o Enem pela plataforma.
Por fim, há pressão social. De um lado, não se aceita mais que o ensino superior seja um espaço elitizado e voltado à perpetuação da concentração de renda. Ações afirmativas são apenas uma das várias políticas voltadas para acesso e permanência de grupos sociais que antes não estavam nesse espaço. Por outro lado, a universidade não escapa da polarização e das disputas ideológicas que afloram nas sociedades contemporâneas. O Pew Research Center publicou, em 2017, que 58% dos republicanos entendiam que a educação superior tinha efeitos negativos no país, contra 72% dos democratas que viam nela efeitos positivos.
A REINVENÇÃO DA UNIVERSIDADE
A universidade se reinventará na pesquisa. O conhecimento acadêmico não é menos importante do que os produzidos pela indústria. O que difere os saberes produzidos pela academia e pelas empresas e outros espaços é que esses últimos possuem uma finalidade específica e um público-alvo, consumidores ou stakeholders. Os propósitos são distintos e a lógica econômica não pode dominar a esfera científica, ainda que as instituições devam buscar formas de remuneração com base no que produzem. Daí a relevância do espaço da universidade para a sociedade.
A universidade se reinventará no ensino. Ela se adequa para oferecer formação e certificações diferenciadas. Compete no ambiente online e resiste como espaço para aprendizagem. Não pode depender apenas da aceitação do diploma pelo mercado. Deve oferecer aos estudantes oportunidades para que construam seu portfólio de projetos e competências – daí a adoção de aprendizagem por projetos ou por problemas.
A universidade se reinventará na sociedade. Ela procura ser sustentável e verde, inclusiva e plural, contestadora e inovadora. Será um dos principais espaços de encontro entre pessoas diferentes, algo que as redes sociais parecem proporcionar cada vez menos. As questões políticas e sociais deverão ser trazidas para esse ambiente.
A academia não continuará a ter um papel exclusivo de produção científica e de formação de profissionais para o mercado de trabalho. Talvez vejamos o fim da universidade na forma tradicional como a conhecemos. Mas ela já está adquirindo outra roupagem, ganhando outra função social, adaptando-se aos tempos e às demandas atuais. Muitas pessoas buscam a academia e a seguirão buscando, mas por outras razões e mais amplas do que as de hoje.
Originalmente publicado em:
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