Escolha antes de tudo pedagógica

Para a adoção de qualquer tecnologia, é preciso revisitar o currículo e então criar o projeto sustentável e que ofereça um ensino motivador e que atraia mais estudantes
A pandemia levou várias instituições de ensino superior a adotarem o ensino remoto emergencial para dar seguimento aos cursos. Após um ano e meio do fechamento das salas de aula das universidades, com o avanço da vacinação e a perspectiva de retomada parcial das atividades presenciais, muito se tem falado sobre o ensino híbrido. Mas o que seria exatamente esse tipo de ensino? Devemos entender o ensino híbrido como uma tendência relevante para o futuro da educação ou como um novo modelo emergencial?
A combinação entre online e offline está sendo a maneira pela qual muitas instituições de ensino estão se reinventando e se adaptando a essa nova realidade. A necessidade de garantir o distanciamento social, de forma a preservar a segurança de todas as pessoas presentes numa sala de aula física, ou mesmo a necessidade de viabilizar a participação de quem não tem como comparecer presencialmente a um curso, por razões pessoais ou sanitárias, são motores desse movimento. Ao lado delas, razões de marketing e posicionamento de mercado começam a aparecer, e grupos educacionais anunciam o ensino híbrido como diferencial para captação de novos estudantes. Instituições sinalizam que essa combinação pode ter chegado para ficar. No entanto, essa prática corre o risco de ser mal compreendida por conta do contexto em que a adotamos e das múltiplas compreensões sobre o seu significado.
O que é ensino híbrido?
Às vezes, conceitos e palavras se perdem em uma confusão de informação, e com a combinação de ensino online e offline não é diferente. Ensino híbrido (hybrid learning), ensino misturado (blended learning), ensino remoto (remote learning), sala de aula híbrida (hybrid classroom), ensino flex ou hyflex blended learning, ensino remoto emergencial, e vários outros nomes são apenas alguns termos que começaram a estar na boca de professores e gestores de instituições de ensino.
Vamos tentar simplificar esse emaranhado de termos. Para isso, precisamos pensar em três critérios: a) qual o papel do ambiente online no processo de aprendizagem (acessório, prioritário ou integrado ao presencial)? b) a participação online e offline ocorre simultânea ou separadamente? c) a participação online ou offline é uma escolha do estudante, do professor ou da instituição?
Com base nesses três critérios é possível diferenciar tipos de integração de tecnologia e conexão ao ensino. No ensino remoto, todo o processo de aprendizagem é realizado de forma online, podendo ou não envolver encontros de participação simultânea entre professores e estudantes (remoto síncrono, assíncrono ou misto). Já no ensino misturado (blended), o ambiente online é utilizado para complementar o aprendizado presencial. Por exemplo, os estudantes realizam uma preparação online para o encontro, como o desenvolvimento de um trabalho em grupo a ser apresentado em sala de aula. O professor também pode realizar, de forma pontual ao longo do curso, encontros online com o objetivo de dialogar com convidados de outros países ou cidades. Entende-se, entretanto, que a sala de aula presencial continua a ser o espaço central para atingir os objetivos de aprendizagem.
Já no ensino híbrido o ambiente online é pensado de forma integrada ao ambiente presencial. A proposta é identificar os objetivos de aprendizagem, o perfil dos estudantes e os recursos disponíveis para delimitar as melhores estratégias (online ou offline) para atingi-los, sem priorizar um espaço em detrimento de outro. Unindo elementos de ambas as modalidades, online e presencial, a implementação do ensino híbrido é bem mais complexa do que somente juntá-las.
Nessa linha, o ensino híbrido é uma categoria abrangente de propostas que podem envolver uma ampla gama de formatos de aprendizagem: a) encontros 100% remotos e 100% presenciais no mesmo curso; b) encontros em que uma parte dos estudantes estão presenciais e uma parte online; c) qualquer combinação dos dois formatos anteriores. Podem envolver também atividades não simultâneas realizadas tanto no ambiente online (como uma pesquisa para um estudo de caso ou a realização de uma entrevista por meio de uma plataforma de videoconferência), quanto atividades a serem realizadas de forma presencial (como a visita a uma instituição do sistema de justiça).
A proposta hyflex, por sua vez, seria uma espécie de ensino híbrido que se caracteriza pela possibilidade de o próprio estudante escolher se prefere estar online ou offline. As salas de aula híbridas são um dos recursos que permitem a proposta hyflex e podem ser utilizadas no ensino híbrido e no blended também. É um espaço em que estudantes podem se encontrar de forma simultânea estando no modo presencial ou online.
A complexidade do ensino híbrido e da sala de aula híbrida exige uma reconfiguração do modo como professores(as) se relacionam com seus estudantes e conduzem as atividades, bem como um uso ainda mais planejado e estratégico das novas tecnologias. Ainda que a instituição ofereça uma sala totalmente equipada para conectar estudantes em sala de aula e remotos, há diversas especificidades que exigem atenção, domínio e técnica do docente. Basta imaginar mediar o diálogo entre estudantes que estejam em uma visita técnica a uma instituição com outra parte da turma acompanhando de forma online e um convidado externo, trocando ideias e percepções sobre a experiência.
O uso dos espaços e a prática pedagógica demandarão uma logística e um planejamento que considerem esse cenário e seus diversos aspectos. Portanto, articular essas diferentes modalidades e recursos de ensino por meio de escolhas conscientes será nosso próximo desafio. Mas ele não é apenas uma questão para os professores individualmente.
O risco de entrar na onda do ensino híbrido
Com as instituições reformulando suas práticas e se reinventando, é fundamental refletirmos sobre como queremos que o ensino híbrido seja, para que possamos construí-lo a partir de parâmetros bem definidos. Há uma forte possibilidade de que, estimuladas pelo contexto da pandemia e pela pressão dos concorrentes, instituições e mantenedoras façam grandes investimentos em equipamentos e salas híbridas para “entrar na onda do ensino híbrido”.
Portanto, o primeiro olhar que devemos lançar é para a instituição. Devemos ter clareza de que a decisão quanto a adotar ou não o ensino híbrido não pode ser simplesmente uma escolha individual de cada docente. Além de depender de uma estrutura específica, a escolha pelo ensino híbrido implica uma nova concepção sobre o papel da tecnologia no processo de aprendizagem e de uma formação específica para lidar com a mediação online-offline. Deve se tratar, portanto, de algo previsto no currículo e integrante do projeto político-pedagógico da instituição.
As motivações e os objetivos para adotar o ensino híbrido devem estar claros, e evidentes uma relação de custo-benefício financeira e pedagógica. Um exemplo: um programa de pós-graduação profissional com estudantes de todos os locais do país pode se beneficiar da combinação proporcionada pelo ensino híbrido, reduzindo os custos de deslocamento dos estudantes, aumentando a diversidade de experiências e pessoas em sala de aula, e facilitando o acesso a convidados nacionais e internacionais de expressão para acompanhar as atividades.
Os investimentos em equipamentos também devem estar orientados por uma proposta pedagógica clara. Um exemplo simples: equipar uma sala de aula com monitor voltado para o professor, mas sem câmera que mostre o restante da turma, fará com que os alunos no ambiente online interajam apenas e tão somente com o professor, não vendo os colegas. A concepção pedagógica por trás dessa configuração é clara: o que importa é o professor. Se a instituição valoriza o ensino participativo, centrado nos estudantes e não no docente, investir em uma sala de aula nesse formato não é a melhor escolha pedagógica.
O segundo olhar necessário deve ser dirigido a quem regula o ensino, especialmente o MEC. Em breve deverá surgir uma regulação a respeito do ensino híbrido. O alerta, porém, deve ser dado: temos que tomar cuidado sobre como praticaremos esse tipo de ensino no Brasil. Mesmo antes da pandemia, já tivemos a oportunidade de dar aula em programa que combinava 15 estudantes presenciais com quase 200 estudantes online. Que tipo de ensino é possível neste contexto? Esse novo modelo de ensino favorecerá o protagonismo do estudante em sala de aula ou trará mais desafios para sua participação e engajamento? A modalidade servirá para massificar ainda mais o ensino, escalando-o em busca do lucro, ou proporcionará maior democratização e inclusão?
A questão urgente que propomos é de nos debruçar nessa nova era de ensino com maior consciência sobre o futuro que queremos construir. Isso envolve múltiplas variáveis: um país extremamente desigual com realidades muito distintas umas das outras; variados tipos e portes de instituições de ensino; diferentes práticas pedagógicas e valores pessoais; diversos propósitos para o ensino superior, como formar mão de obra para o mercado, fomentar a ciência, formar cidadãos etc.
Precisamos abrir espaço para um diálogo aberto sobre essas diferenças. Somente a partir de uma reflexão institucional e pedagógica será possível compreender se o ensino híbrido servirá para melhorar a qualidade da formação oferecida aos estudantes, proporcionando um ensino que seja verdadeiramente significativo, inovador e inclusivo.
Originalmente publicado em:
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